A nova norma europeia alarga a definição de produto para abranger expressamente ficheiros e software fabricados digitalmente, bem como danos, de modo a que, para além de danos pessoais e materiais, a perda ou corrupção de dados fora da esfera estritamente profissional seja agora também abrangida.

Por Teresa Repullo, advogada da Bird & Bird
A 28 de setembro de 2022, foi publicada uma Proposta da Comissão Europeia com o objetivo de substituir, uma vez aprovada, a histórica Diretiva 85/374/CEE, que dentro de pouco mais de dois anos celebrará o seu 40º aniversário.
Apesar do indubitável sucesso desta Diretiva, 40 anos é muito tempo, especialmente no contexto em que se pretende regulamentar: a responsabilidade pelo produto. Não há dúvida de que a nossa economia e, sobretudo, os produtos e a forma de consumo mudaram e evoluíram radicalmente nos últimos anos, tornando verdadeiramente necessário atualizar a regulamentação a fim de cobrir certas situações ou produtos que agora escapam através das fendas de uma regulamentação concebida para outro contexto, outros produtos e outra forma de consumo.
Assim, embora a avaliação da Diretiva realizada em 2018 tenha concluído que se tratava, em geral, de um instrumento relevante e eficaz, alguns problemas já tinham sido identificados.
A proposta da Comissão Europeia visa abordar estes problemas e estabelece quatro objectivos-chave:
- Assegurar que as regras de responsabilidade refletem a natureza e os riscos dos produtos na era da economia digital e circular.
- Assegurar que haverá sempre uma empresa no território da UE que possa ser responsabilizada por produtos fabricados por fabricantes localizados fora da UE, particularmente tendo em conta a tendência dos consumidores para comprar diretamente de países fora da UE.
- Aliviar o ónus da prova em casos complexos e aliviar as restrições à apresentação de reclamações, assegurando ao mesmo tempo um equilíbrio justo entre fabricantes e consumidores.
- Garantir a segurança jurídica através de uma melhor harmonização desta directiva com o quadro jurídico criado pela Decisão 768/2008/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de julho de 2008, relativa a um quadro comum para a comercialização de produtos e com regras de segurança dos produtos, bem como através de uma codificação da jurisprudência em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos.
Todas estas questões são abordadas (se melhor ou pior, o tempo o dirá) na proposta da Comissão Europeia publicada a 28 de setembro de 2022. Além disso, é evidente que a proposta tem em consideração os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre esta matéria desde 1985, uma vez que algumas das questões sobre as quais o Tribunal tem decidido estão refletidas nos artigos da proposta.
Sem querer fazer uma análise exaustiva das muitas novidades introduzidas pela proposta, que ultrapassariam consideravelmente o âmbito deste breve artigo, centraremos a nossa atenção naquelas que, na nossa opinião, têm ou podem ter o maior impacto.
A primeira questão notável é que a proposta alarga a definição de produto (artigo 4º), abrangendo agora expressamente ficheiros e software fabricados digitalmente. A definição de dano é também alargada (artigo 4º), de modo que, para além dos danos pessoais e materiais, é acrescentada a perda ou corrupção de dados fora da esfera estritamente profissional.
Em segundo lugar, relativamente ao conceito de produto defeituoso (artigo 6º), embora a definição da Diretiva 85/374/CEE seja mantida (“um produto é defeituoso quando não oferece a segurança a que uma pessoa tem legitimamente direito, tendo em conta todas as circunstâncias”), a proposta alarga as circunstâncias a ter em conta para este efeito. Estas novas circunstâncias incluem o efeito sobre o produto da sua capacidade de continuar a aprender após a utilização (através de algoritmos de aprendizagem mecânica dos produtos), o efeito sobre o produto de outros produtos cuja utilização conjunta pode ser razoavelmente esperada, os requisitos de segurança do produto ou as expectativas específicas dos clientes finais.
Em terceiro lugar, a proposta introduz novos operadores ou agentes económicos potencialmente responsáveis (artigo 7º), todos eles definidos no artigo 4º. Assim, a proposta já não se refere ao “produtor”, mas ao fabricante do produto ou componente defeituoso, ao importador ou representante autorizado (quando o fabricante está localizado fora da União Europeia), ao prestador do serviço de cumprimento (quando o fabricante, importador ou representante autorizado está localizado fora da União Europeia) e ao distribuidor (quando o fabricante ou outros agentes não podem ser identificados). No que diz respeito ao distribuidor, é de notar que a proposta exige, a fim de responsabilizar o distribuidor, que o queixoso solicite ao distribuidor que identifique o operador económico ou comerciante que forneceu o produto e que o distribuidor não o faça no prazo de um mês (seria, portanto, necessário um pedido expresso do queixoso, mas o prazo, que anteriormente só tinha de ser “razoável”, seria reduzido). Também, no que diz respeito à economia circular, a proposta esclarece que uma pessoa singular ou coletiva que modifique um produto que já tenha sido colocado no mercado ou posto em serviço será considerada como fabricante, desde que a modificação possa ser considerada substancial ao abrigo das regras de segurança do produto da UE ou nacionais, e que tal tenha ocorrido fora do controlo do fabricante original.
Em quarto lugar, a proposta prevê que os Estados devem assegurar que os tribunais nacionais tenham o poder, a pedido de uma parte lesada que tenha apresentado factos e provas “suficientes para apoiar a plausibilidade do pedido”, de ordenar ao requerido que revele ou forneça provas de que disponha (artigo 8º). Os tribunais nacionais devem poder limitar tais pedidos ao que é “necessário e proporcional”, tendo em conta os interesses legítimos de todas as partes e, em particular, a proteção de informações confidenciais e segredos comerciais. Em relação a esta inovação específica, destinada a reduzir a assimetria de informação existente entre operadores económicos e consumidores, teremos de esperar para ver como ela se traduz na nossa legislação nacional e, sobretudo, como interpretar o que deve ser entendido por “necessário e proporcional”.
Em quinto lugar, a proposta introduz inovações relevantes em termos do ónus da prova (artigo 9º). Embora seja ainda o queixoso que tem o ónus de provar o defeito, o dano e o nexo de causalidade, é introduzida uma série de presunções a seu favor (em relação às quais é possível provar contra) no que diz respeito ao defeito ou ao nexo de causalidade. Em particular, presumir-se-á que um produto é defeituoso se a entidade queixosa não revelar ou não apresentar provas disponíveis; se o queixoso provar que o produto não cumpre os requisitos de segurança obrigatórios; ou se o queixoso provar que o dano é causado por um mau funcionamento manifesto do produto em condições normais de utilização ou em condições normais.
Também se presumirá um nexo causal quando se provar que o produto é defeituoso e o dano causado é de um tipo consistente com tal defeito. Além disso, a proposta prevê que, no caso de o queixoso enfrentar “dificuldade indevida” em provar o defeito ou o nexo causal devido à complexidade técnica ou científica do caso, estes serão presumidos quando o queixoso tiver estabelecido que 1) o produto contribuiu para o dano; e 2) é provável que o produto tenha sido defeituoso ou que a sua defetividade seja uma causa provável do dano. O arguido pode, no entanto, contestar a existência de dificuldades indevidas e a existência da probabilidade referida na presente disposição. Se a redação da proposta for mantida, poderá significar que, de facto, a discussão processual (e a prova) deixará de se centrar na existência ou não de um defeito no produto (cuja prova é sempre mais difícil), mas sim no cumprimento ou não das presunções estabelecidas a favor do consumidor e na existência ou não de dificuldades indevidas em cada caso.
Finalmente, embora a proposta mantenha substancialmente a regulamentação do estatuto de limitações para ações destinadas a reclamar danos causados por produtos defeituosos, introduz uma modificação importante no que diz respeito à extinção dos direitos da parte lesada (artigo 14). Assim, o período de 10 anos para iniciar o processo a partir da data em que o produto defeituoso que causou o dano foi colocado em circulação (ou foi substancialmente modificado) é mantido, mas este período é alargado para 15 anos quando a parte lesada não tiver podido iniciar o processo dentro do período de 10 anos devido à latência do dano pessoal.
Em conclusão, e como antecipámos, a proposta da Comissão Europeia dá uma resposta a certas questões que não estavam definidas na Diretiva 85/374/CEE e que tinham sido parcialmente resolvidas pelo TJUE em diferentes decisões. Contudo, numa primeira leitura, uma série de questões (por exemplo, a introdução de certos conceitos jurídicos indefinidos, presunções a favor do consumidor ou novas formas de obter provas e operadores económicos potencialmente responsáveis) já são aparentes e irão, sem dúvida, levantar novas questões e colocar novos desafios. Se a nova diretiva for adotada na redação da proposta, estas questões e desafios darão origem a interpretações conflituosas e a litígios consideráveis, que os nossos tribunais terão de resolver e esclarecer.