O Governo pode ajudar criando condições para formar, atrair e manter uma população de recursos humanos qualificados, sugere Gabriel Coimbra, director-geral da IDC Portugal.
A base da transformação digital, a conformidade com a terceira plataforma, ainda não está construída em muitas organizações portuguesas, observa Gabriel Coimbra. Outras economias já começam a explorar muitos aceleradores de inovação, um conjunto no qual a consultora engloba, IoT, robótica, inteligência artificial, realidade virtual e aumentada, além de um nova geração de cibersegurança.
Mesmo com melhorias na intenção de investimento em TIC para 2018, o atraso tende a manter-se. Governo e Administração Pública (AP) podem ter influência positiva de várias maneiras, segundo o director-geral da IDC Portugal e vice-presidente de grupo para a Europa.
Simultaneamente, avança, o sector português mantém o potencial de consolidação seguindo a matriz da compra da Iten pela Claranet.
CW ‒ Que variação face a 2017 ou a outros anos indicam os dados sobre a intenção de investimento das organizações portuguesas, durante 2018?
Gabriel Coimbra ‒ Com base num inquérito a 307 organizações, concluímos que 48% iriam investir mais em TIC, durante 2018. E vemos que a percentagem tem aumentado, desde 2014.
Há três anos, perto de 25% das empresas tencionavam gastar mais no ano seguinte. Outros dois quartos previam gastar o mesmo e 25% pretendia gastar menos. Actualmente só 10% tenciona gastar menos. Há um sinal muito claro de inversão.
CW ‒ A IDC chegou à conclusão de que o objectivo da redução de custos, incluindo de TI, perdeu peso nas prioridades das empresas. Mas não se terá diluído no tema da eficiência de operações?
GC ‒ A eficiência operacional implica fazer mais com menos. Mas não implica cortar investimentos. Se eu quiser uma fábrica mais eficiente, devo investir mais em TI, para produzir com menos custos.
E as empresas estão a gastar mais em TIC, em termos de Capex e Opex, para garantir maior eficiência.
CW ‒ E a tendência é muito recente?
GC ‒ A inversão começou há três anos e actualmente nota-se que é clara. A redução de custos passou a ser a sexta prioridade (para 2018). Só 30% das organizações dizem que têm por objectivo reduzir custos, enquanto 69% assinalam pretender aumentar a eficiência.
E há uma correlação: grande parte destas estão a investir mais em TIC.
CW ‒ Mobilidade, Cloud e Big Data continuam a ser os grandes vectores de investimento. Não houve quaisquer mudanças significativas?
GC ‒ Nós considerávamos como mercado de TI os segmentos de software, hardware e serviços. E não contávamos com outros, como o de alguns sensores de IoT e a robótica comercial, por exemplo.
Passámos entretanto a incorporar cada vez mais segmentos de produtos e serviços na análise, porque as TI fazem cada vez mais parte de soluções de robótica e de IoT. Isso altera o mercado. O que mudou em 2017, e já notávamos um pouco em 2016, é que o mercado da terceira plataforma, juntamente com o dos aceleradores de inovação, representaram 49% do total do mercado.
Mas há cinco anos, a terceira plataforma já representava um quatro do mercado, sobretudo com a mobilidade.
CW ‒ Isso explica só por si o crescimento do mercado?
GC ‒ Também explica.
CW ‒ Há uma parte, a da segunda plataforma, que está a cair. Portanto muito desse maior do crescimento surge desses novos segmentos, correcto?
GC ‒ Em 2017 o mercado tradicional de TI caiu 7,9%, segundo resultados de uma revisão feita recentemente.
E deverá continuar a regredir 7 a 8% ao ano até 2021, uma média de 7,3% de decrescimento composto.
Os mercados dos aceleradores cresceram 15,2% e até 2021, juntamente com os da terceira plataforma, devem subir 12,1%. Tudo conjugado, o mercado deverá ter um crescimento anual composto de 3%.
CW ‒ Mobilidade, Cloud Computing e Big Data continuam a ser grandes temas em Portugal, enquanto noutros países estão a perder fulgor. Podemos concluir que há falta de maturidade e atraso das TIC nas organizações portuguesas?
GC ‒ Em Portugal a terceira plataforma cresceu 15,7% e o mercado de aceleradores de inovação teve um aumento de 15,2%. Noutros países e sobretudo nos EUA, a terceira plataforma quase já não cresce a dois dígitos, mas sim a 8 e 9%, no máximo 11%. O que está a crescer quase a 20% é o mercado dos aceleradores.
No passado, vimos muitas empresas nas economias mais desenvolvidas a fazerem a preparação das suas infra-estruturas para a cloud computing. Adoptaram uma abordagem para aplicações dando prioridade à mobilidade e redesenharam os postos de trabalho com uma perspectiva de colaboração.
Fizeram esse trabalho nos últimos cinco anos e hoje estão com projectos de IoT, robótica, realidade aumentada e virtual, entre outros.
CW ‒ Portanto, o atraso das organizações portuguesas ainda é bastante significativo. Ainda não somos competitivos do ponto de vista das TIC implementadas, concorda?
GC ‒ O tema tem várias vertentes, considerando startups portuguesas e algumas empresas de TIC portuguesas. Mas se olharmos para a maturidade do TI das empresas portuguesas continua bastante abaixo daquela das organizações das economias mais desenvolvidas.
Podemos dizer que, na evolução para a terceira plataforma, as organizações portuguesas estão quatro a cinco anos atrasadas. A base, a conformidade com a terceira plataforma, ainda não está construída.
CW ‒ E essa é uma das dificuldades para as empresas serem depois “digital transformers” e “digital disruptors”?
GC ‒ Vemos cinco grandes desafios de transformação, para evoluírem até esses patamares. O primeiro é organizacional.
Existe ainda uma desconexão muito grande entre departamento de TI e áreas de negócio. Por isso o TI não consegue dar resposta às necessidades de transformação daquelas.
Por isso as áreas têm de recorrer ao exterior e não há transformação, porque esta só existe, quando são as próprias áreas as condutoras de inovação.
CW ‒ Esse desalinhamento continua a ser tão pronunciado?
GC ‒ Há mais alinhamento, mas existe uma maior pressão, enorme, para as organizações se transformarem digitalmente. Além de se saber o que as TI custam para a organização, trabalho já mais concretizado, interessa perceber como é que o TI pode criar novos fluxos de receita e aumentar a satisfação dos clientes.
Esse alinhamento ainda não existe. Nas organizações com transformação digital mais madura, as TIC já são o negócio, como nas nativas digitais.
Falta frequentemente nas organizações portuguesas uma planificação para a forma como a sua iniciativa digital vai evoluir. A transformação tem exigências para as empresas incumbentes, aquelas que não nasceram na terceira plataforma.
CW ‒ Que outras barreiras existem?
GC ‒ As organizações não têm os indicadores necessários para singrar na economia digital. Há uma série de elementos necessários para medir o sucesso da sua transformação digital.
Um deles é a percentagem das receitas provenientes de canais digitais ou mesmo de produtos informacionais. As empresas não conseguem quantificar o valor da informação nem o impacto que o digital tem.
Portanto, precisam de criar esses indicadores. Outro dos elementos relevantes é a capacidade de as organizações estarem ligadas a outros ecossistemas digitais. E esse tipo de indicadores não existe.
Um aspecto também importante são as competências para o mundo digital: o TI não as tem e o negócio também não.
E há ainda o problema da plataforma digital. As organizações foram-se desenvolvendo em torno de sistemas legados e estão muito dependentes deles.
Uma organização precisa hoje de um sistema para gerir a informação interna, tanto dos processos, os activos digitais, como da colaboração entre trabalhadores internos e externas. Acrescem ainda os elementos provenientes de ambientes externos.
Tudo tem de estar interligado. Cada vez mais os produtos [depois de vendidos] estão conectados e interessa saber, em tempo real, como estão a ser usados. E isso exige novas plataformas para lidar com outros desafios, por exemplo de agregação de informação.
CW ‒ Mas o desafio centra-se na recolha dos dados? Várias consultoras e analistas dizem que o problema está em extrair a informação mais pertinente.
GC ‒ Depende do negócio. Há aqueles nos quais não interessa, de facto, recolher toda a informação gerada pelo produto. E importa, talvez, ter um sistema de aprendizagem automática em “streaming” capaz de ler o desempenho do produto e que só quando há um desvio do normal, desencadeia um alerta.
CW ‒ Portanto, é preciso mudar a abordagem nesses aspectos para a transformação?
GC ‒ Para serem “transformers” e principalmente “disruptors” têm de prestar atenção àqueles desafios. A transformação é constituída por esses cinco pontos.
As empresas “transformers” e “disruptors” estão a oferecer experiências diferenciadoras aos seus clientes, usando o digital. E estão também a criar novos mercados com novos modelos de negócio.
Uma empresa retalhista pode entrar de alguma forma no sector financeiro, tal como um banco poderá criar uma plataforma de eCommerce.
CW ‒ Tendo em conta as vossas projecções de evolução das empresas portuguesas para dez áreas, o processo de amadurecimento das organizações portuguesas não vai acelerar muito. O atraso parece que vai continuar.
GC ‒ Sim. Nós acreditamos que daqui a dois a três anos mais de 50% da economia mundial estará digitalizada, e na economia portuguesa 30% estará nesse estado, por exemplo.
CW ‒ O que é que o Governo português poderá fazer para ajudar a acelerar este processo de transformação digital?
GC ‒ Há muitos aspectos, mas importa referir um ponto principal. Actualmente, com uma economia cada vez mais digital, estamos perante um mercado realmente global e acessível a todas as empresas.
Cabe a estas organizações, grupos económicos e empreendedores, agarrarem as oportunidades, além de transformarem e criarem novas. Isso não depende do Governo, mas é fundamental.
Mas quanto mais estabilidade na segurança pública, Justiça, Saúde e Educação o país, tiver melhor será para as empresas portuguesas e as estrangeiras. Neste ponto, é importante criar condições para Portugal conseguir receber investimento estrangeiro por parte de empresas de base tecnológica.
E este ponto não passa só por oferecer benefícios fiscais diferenciadores. Trata-se de criar condições para Portugal ter pessoas qualificadas e que isso possa atrair outras para trabalharem no país.
Porque há o desafio muito grande de sustentar a absorção de muitos recursos humanos por grandes multinacionais que se estabelecem no mercado português, sem levar as empresas portuguesas a ficarem desfalcadas de profissionais.
É preciso dar uma série de incentivos para as pessoas virem trabalhar para Portugal. Portanto interessa formar, requalificar e atrair profissionais.
CW ‒ E que outros aspectos podem ser importantes?
GC ‒ Pode-se destacar outro: a Administração Pública deve dar o exemplo. Deve ser motor de inovação, olhar para as novas tecnologias para melhorar serviços ao cidadão.
Mas na área legislativa importa também que não se deixem zonas cinzentas quanto à legislação sobre novas tecnologias, clarificando quais são os riscos de as empresas trabalharem em áreas como as de “blockchain” ou inteligência artificial. Muito vai depender da União Europeia, mas os reguladores em Portugal podem criar condições especiais e favoráveis.
Por exemplo, plataformas de ensaio em que empresas e organizações de mercados muito regulados, com dimensões até um determinado limite, possam testar tecnologias.
CW ‒ Cerca de 49% da AP quer investir mais em TIC durante 2018. Nas mesmas áreas das empresas?
GC ‒ Há diferenças. No sector financeiro 100% das organizações diz que a mobilidade é crítica. Já têm uma abordagem de prioridade à mobilidade.
No caso da distribuição e retalho, 70% das empresas também tem a mesma estratégia. E na AP o indicador fica nos 61%, valor abaixo da média.
Quanto à terceira plataforma e aceleradores de inovação, os decisores da AP dão-lhes menos importância do que outros sectores. A cloud é citada por 55%, Big Data, por 53%, redes sociais – 41%, IoT – 39%, inteligência artificial – 14 e robótica – 6%. Todos os componentes ficam abaixo da mobilidade (61%).
CW ‒ A previsão de que o retalho vai liderar o aumento de investimento em TIC é novidade para este ano?
GC ‒ No retalho, 57% das organizações diz que pretende aumentar o investimento face a um média de 48%. Mas o mesmo acontece com o sector de utilities e energias.
CW ‒ Que leitura faz disso?
GC ‒ Há nesses sectores uma dinâmica forte, mas dentro do sector financeiro ela é grande nos seguros. Na AP destaca-se a área da saúde, com 60% a revelar intenção de investimento. Todos acima da média.
CW ‒ Considerando o actual estado do sector das TIC, que impacto pode ter a compra da Iten pela Claranet?
GC ‒ Notamos uma tendência para a consolidação, face à regressão do mercado da segunda plataforma. Nesse caso vemos um fornecedor orientado para terceira plataforma, a crescer bastante e a Iten ainda muito dependente da segunda plataforma…
CW ‒ Mas que já estava a fazer a transição…
GC ‒ Estava, mas não é fácil. E por isso acabaram por se unir num movimento inteligente, juntando o melhor dos dois mundos: uma empresa com base instalada enorme (Iten) e outra a crescer bastante.
CW ‒ Mas o mercado português continua propenso à consolidação?
GC ‒ A tendência já vem dos últimos anos, mas ainda deverá haver mais consolidação. Será normal que mais empresas dinâmicas focadas na terceira plataforma e aceleradores venham a ganhar relevância, tanto sendo adquiridas ou adquirindo.
A fusão Claranet/Iten mostra claramente que o mercado está a passar da segunda para a terceira plataforma.
O sector português de TIC também depende muito de projectos internacionais e as empresas que cingem o seu negócio ao mercado interno tendem para a consolidação.
CW ‒ As áreas com empresas mais interessantes para comprar também são cada vez as de software?
GC ‒ Sim, mas cada vez mais fornecido como serviço, nas áreas de segurança, de IoT e na robótica. Mas também há esse potencial com a inteligência artificial aplicada ao negócio e a realidade aumentada.