Ter infra-estrutura de redes própria e usar software aberto sempre que possível são algumas das linhas de acção da governação de TI em Barcelona. Objectivo: ser uma democracia digital, uma Internet de cidadãos, com as pessoas em primeiro lugar, afirma Francesca Bria, CTO da cidade.

Francesca Bria, CTO e Digital Innovation Officer da cidade de Barcelona
Transformar um meio urbano numa cidade inteligente exige a definição de estratégias concretas. Após a definição dos objectivos importa passar à acção. Francesca Bria, CTO e “digital innovation officer” da cidade de Barcelona, já identificou, juntamente com os restantes responsáveis de topo da autarquia, quais os desafios da urbe e nenhum é tecnológico.
O grande desafio da transformação digital passa sempre por uma “mudança organizacional, cultural e de ‘mindset’”. Após a definição da “estratégia política” e de identificados os problemas que se pretendem resolver, devem então colocar-se as questões da tecnologia.
Quando chegou a Barcelona, há cerca de dois anos, o ponto de partida que encontrou não era o ideal, mas tinha vantagens, afinal, a cidade teve, durante mais de uma dezena de anos uma agenda focada na tecnologia, pelo que existem 500 quilómetros de fibra [óptica] distribuída por toda a cidade, sobre os quais existe uma rede de sensores que recolhe três milhões de pontos de dados diariamente.
Esta rede de sensores, a “Sentilo”, é um middleware construído com normas abertas e software opensource que interliga os sensores da cidade, com as aplicações que os monitorizam e controlam. Esta rede de sensores ubíqua permite a recolha de dados que ajudam a gestão de parques, a mobilidade, a gestão de lixos e de água ou eficiência energética da cidade.
Computerworld – Sinteticamente, quais são os objectivos da cidade “inteligente” de Barcelona?
Francesca Bria – A cidade de Barcelona quer ter habitação a preços acessíveis, utilizar mais energias renováveis, apostar na mobilidade sustentável, reduzir as emissões de CO2, criar mais espaços verdes públicos e ter uma democracia mais participativa. Estes são actualmente os principais objectivos da cidade.
CW – O que encontrou quando tomou as rédeas da política digital da cidade há cerca de dois anos?
FB – Quando fui convidada pela presidente da Câmara para ocupar o cargo de CTO e digital innovation officer, encontrei uma cidade inteligente focada numa abordagem, seguida durante mais de uma dezena de anos, centrada na tecnologia. O foco estava na tecnologia e não nos cidadãos
Acredito que no entanto que se deve focar a abordagem, em primeiro lugar, nas necessidades dos cidadãos e nos desafios urbanos da cidade em primeiro lugar para depois procurar a tecnologia necessária e a melhor forma de a governar.
Encontrei também vários “dashboards”. Quando cheguei à cidade fiz uma auditoria tecnológica e a cidade tinha sete “dashboards” diferentes, muito sofisticados, comprados a diferentes fornecedores. No entanto, nenhum deles era de facto utilizado para tomar melhores decisões ou para melhorar os serviços públicos.
CW – Porque estava a cidade tão focada na tecnologia?
FB – A agenda das cidades inteligentes foi, num primeiro momento, liderada pela tecnologia, em particular por empresas tecnológicas e telecom. Barcelona é uma das cidades mais inteligentes, porque começou a colocar infra-estruturas há muito tempo, incluindo redes de fibra e sensores para recolher imensos dados.
Mas, só depois [da infra-estrutura colocada] é que a administração começava a perguntar “o que vamos fazer com esta informação? Que tipo de problemas podemos resolver com estes dados e como?”
CW – O que não funcionou na agenda anterior, centrada na tecnologia?
FB – Antes, não havia de facto uma estratégia na cidade. Quando se introduz uma nova revolução ou mudança tecnológica, a principal questão nunca deve ser a tecnologia: deve ser sempre a mudança organizacional, cultural e também de mindset. E também a estratégia. “Qual é a estratégia política, o que está a tentar resolver-se com essa tecnologia, quais são os principais problemas? E quais são as questões que se está a pôr à tecnologia?”
Caso contrário, poderá estar a perguntar-se “para que é que precisamos da cidade inteligente ou até mesmo da tecnologia? Porque estamos a colocar tecnologia na cidade?” O que acontece é que muitas cidades não fazem ideia.
Ao não ter uma “framework”, uma estratégia, acaba-se a dedicar o tempo e recursos a resolver problemas tecnológicos, relacionados com interoperacionalidade. Por exemplo, coloca-se uma rede de sensores no pavimento que não comunica com a rede de sensores da iluminação.
Quando se começa apenas pela tecnologia, acabamos com soluções proprietárias não-interoperacionais, como modelos de negócio insustentáveis. As cidades ficam reféns dos fornecedores, com contratos de licenciamento muito longos. E isto não funciona para a cidade.
CW – Mas ainda assim era uma das cidades mais inteligentes.
FB – O lado positivo deste tipo de agenda, aberta durante os últimos 15 anos, pelo menos em Barcelona, é que conseguimos ter a infra-estrutura correcta. A cidade tem 500 km de fibra, uma rede que pertence à cidade e temos acordos de governação com diferentes fornecedores.
Essa rede está distribuída por toda a cidade, sobre a qual está a nossa rede de sensores, a Sentilo, uma plataforma construída com normas abertas e software open source que está a ser reutilizada por outras municípios em todo o mundo, incluindo em cidades catalãs, mas também no Dubai ou no Japão.
Os sensores, em Barcelona, abrangem três milhões de pontos de dados diariamente e a rede ubíqua permite a recolha de dados que nos ajuda em áreas como parques, mobilidade, gestão de lixos, água, optimização e outras tarefas. Em Barcelona, para além dos 500 quilómetros de fibra, existe ainda Wi-Fi gratuito distribuído através da iluminação das ruas e sensores para monitorizar a qualidade do ar, espaços de estacionamento e até se os caixotes de lixo estão cheios.
CW – Mais detalhadamente, quais são as soluções para os grandes desafios da cidade?
FB – Como referi, os principais objectivos da administração da cidade são reduzir os custos de habitação para os cidadãos, a transição da energia, a mobilidade sustentável e a democracia participativa.
Relativamente à habitação, as casas têm de ser mais acessíveis em determinadas áreas, é preciso reduzir os custos para os cidadãos. Este é uma grande prioridade. Temos tido várias questões com plataformas, como a Airbnb, que do lado tecnológico são muito interessantes, mas que estão a criar muitos problemas nas cidades.
Por um lado, não obedecem aos regulamentos locais e, por outro, estão a contribuir para o aumento dos preços das casas. Os cidadãos já não conseguem viver no centro da cidade. Para mitigar esta situação estamos a usar big data para mapear os preços das casas, tendo sido foi criado o índice médio de preços para determinada área, para que os cidadãos possam confrontar, caso encontrem um apartamento custa três vezes mais, que isto é “basicamente especulação”.
Outro objectivo é a transição da energia. Queremos ter mais produzir mais energia de fontes renováveis e ter “smart grids2” distribuídas. Estamos ainda a apostar na mobilidade sustentável, estando em curso um grande projecto de planeamento: os “Superblocks”.
O objectivo é reduzir as emissões de CO2. Estamos a fechar alguns bairros da cidade ao tráfego e estamos a criar mais zonas verdes.
Finalmente, o último ponto da “framework”: pensamos que não pode haver uma revolução digital sem que haja uma revolução democrática. Para nós a cidade inteligente tem de ser construída, desde os alicerces, com os cidadãos.
Temos de compreender as suas necessidades , temos de os envolver com o desenvolvimento das tecnologias e dos serviços que têm de dar resposta aos problemas dos cidadãos. Estamos a utilizar um modelo híbrido de participação online e offline.
Um processo complexo de participação em que se envolvem realmente os cidadãos utilizando os diferentes canais. É muito importante colocar a democracia participativa no centro da revolução digital.
CW – A generalidade desses objectivos nem está directamente relacionada com tecnologia.
FB – É preciso começar por estas questões e só depois se deve perguntar de que modo é que a tecnologia pode ajudar a resolver estes desafios, que tipo de tecnologia é que precisamos e como é que o fazemos funcionar com os cidadãos.
CW – Referiu que a fibra pertence à autarquia…
FB – Sim. Penso que é um aspecto muito importante, porque quando se detém a fibra, pode abrir-se a fibra para os operadores ou para que outros possam construir e gerir serviços sobre essa fibra.
CW – Parece um bom ponto de partida. O que vão estão a fazer agora?
FB – Sobre a camada de sensores, estamos a construir uma arquitectura baseada em OpenStack, num data lake (City Less), uma plataforma horizontal, com uma metodologia comum para padronização dos dados provenientes dos sensores, dos edifícios e dos cidadãos propriamente ditos e em open source.
Sobre estes dados, estamos a construir uma capacidade realmente avançada. Vamos nomear um Chief Analytics Officer (CAO), algo que não existia até agora, que terá como função contribuir para a utilização dos dados na tomada das melhores decisões e na melhoria dos serviços prestados.
CW – Outro dos grandes desafios passa então também pela gestão de dados?
FB – Pretendemos criar dados como um bem partilhado. Da totalidade dos dados agregados produzidos actualmente, 90% não existia há três anos. E não são apenas dados abertos de governos, mas também dados privados de empresas e muitos dados dos cidadãos.
Na cidade de Barcelona estamos a desenvolver uma estratégia de dados nativa e responsável, que reconhece que os dados são propriedade dos cidadãos e que são estes que têm de decidir que dados se mantêm na esfera privada. É o caso dos dados de saúde, quando se come, quanto se anda ou os registos médicos, que talvez não se queira dar a seguradoras ou bancos.
E que dados podem ser partilhados com a cidade, como é o caso do tráfego, dados sobre emissões de CO2 ou poluição para que a cidade possa utilizar estes dados para melhorar os serviços (ver mais abaixo).
CW – Quais são os próximos investimentos em Barcelona?
FB–Estamos a fazer o processo de transformação digital. Temos 300 trabalhadores na empresa de tecnologia e estamos a contratar quase 70. Temos um orçamento de digitalização de 72 milhões de euros e estamos a inverter a tendência de externalizar tudo.
Penso que a cidade precisa de ser capaz de gerir este processo, formar pessoas, transformar a cultura da organização. Estamos também a mudar para programas em software open source, para que possamos colocar o código no GitHub e criar uma comunidade de programadores, para que pequenas empresas nos possam ajudar a construir serviços e soluções.
Esta estratégia aberta, ética e responsável é realmente o nosso objectivo. É este o caminho a seguir porque de outro modo fica-se nas mãos de alguns fornecedores, sem saber-se muito bem como governar tudo isto e sem capacidade ara resolver as politicas e as necessidades dos cidadãos. É preciso uma estratégia aberta.
CW – É fundamental a gestão da mudança, como?
FB – A gestão da mudança é muito importante. Antes de eu aqui chegar não existia um comissário digital. Sou um comissário digital e estou no governo. Sou tanto Chief Technology e Innovation Officer (CTIO), mas também sou o comissário digital. O que significa que sou a pessoa no governo, responsável pela política digital.
O CTIO assegura que a estratégia é transversal aos diferentes departamentos. A digitalização não é apenas sobre tecnologia, é sobre estratégia de dados, “procurement”, sobre a relação com as empresas, sobre leis e regulamentos, sobre planeamento urbanístico.
CW – O que funciona numa cidade?
FB – Uma cidade precisa de uma abordagem que passa pela padronização da arquitectura, de interoperacionalidade, de interfaces tanto quanto possível abertas, de normas abertas, de segurança e privacidade. Tudo isto é agora obrigatório em Barcelona.
Depois, quando se tem uma arquitectura aberta, podemos focar-nos nas questões que, no nosso caso, são os grandes desafios urbanos, não os problemas de tecnologia.
CW – Quem conselhos dá para a estratégia de digitalização noutras cidades, como a Lisboa?
FB – Antes de mais é necessário pensar na governação da tecnologia. É muito importante que antes de começar, pensar numa estratégia de cidade inteligente. Deve pensar-se em governação, na mudança organizacional.
Hoje toda a indústria fala sobre digitalização. Tem de se saber como, que regras definir, que normas usar para que a digitalização funcione.
E, tal como Barcelona está a fazer, ir para modelos de arquitectura aberta, arquitecturas interoperacionais capacidade construída internamente. A revolução digital tem de servir muitos e não alguns.
Deve integrar com uma abordagem democrática, deve envolver os cidadãos, deve começar pelas necessidades das populações e das suas políticas principais e ver a tecnologia como um serviço. Deve olhar para para tecnologia como algo que permite a agenda política, deve dar poder às gerações mais novas, deve apostar na educação e na inclusão de género.
É preciso investir na educação em ciência, tecnologia, matemática e artes e mitigar o predomínio de homens nas TI. As cidades inteligentes devem ser sobre ter soberania tecnológica, e precisa de ser a soberania dos cidadãos.
Os cidadãos têm de ter a capacidade de ser donos dos dados, de ter uma relação transparente com autarquia, que deve usar tecnologia para servir os cidadãos.
“New deal” dos dados: devolver os dados aos cidadãos
Tem de haver um novo pacto social sobre dados, um “new deal” sobre dados. Tem de se devolver o poder aos cidadãos, têm de ser eles a controlar a transparência sobre a forma como estes dados são usados.
Porque, de outro modo, as cidades inteligentes vão ser caixas negras com algoritmos, com inteligência artificial, operadas por umas poucas empresas, a maioria das quais nem está sediada na Europa. E os cidadãos perdem controlo, os governos perdem controlo e depois perdemos a capacidade para gerir as nossas cidades para o bem comum. A questão de democracia dos dados e “data commons“ é muito importante para a nossa política, explica Francesca Bria, CTO da cidade de Barcelona.
A cidade de Barcelona está a coordenar um “projecto-bandeira”, com a cidade de Amesterdão, no âmbito da CE sobre a utilização de infra-estruturas de dados descentralizada, cifrados, semelhante ao blockchain, para assegurar que os cidadãos podem usar estas infra-estrutura sendo eles a controlar os dados e a compreender como é que estes dados são utilizados com base no tipo de licenciamento que eles escolhem. Dá-se o direito colectivo dos dados aos cidadãos.
Estamos a fazer muitas experiências, porque no final, penso que as cidades podem ser vistas como as responsáveis pelos dos direitos digitais dos cidadãos. Podem mediar para assegurar que a economia digital é mais justa, mais inclusiva e melhor para os cidadãos, conclui.