Será que uma gigantesca rede de milhões de smartphones em todo o mundo pode substituir os grandes observatórios de raios cósmicos?
Sabia que um smartphone pode registar a passagem de partículas que nos chegam do espaço? Basta instalar a aplicação Distributed Electronic Cosmic-Ray Observatory (DECO) agora desenvolvida, tapar a lente da câmara do telefone com fita isoladora, e esperar. Os princípios são os mesmos que fazem funcionar os detectores nas experiências do Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN) ou nos observatórios de raios cósmicos.
“A aplicação transforma o telefone num detector de partículas que usa os mesmos princípios que os detectores das grandes experiências”, explica Justin Vandenbroucke, responsável do projecto e investigador do Centro de Astrofísica de Partículas IceCube da Universidade do Wisconsin (WIPAC, nos EUA).
Os raios cósmicos são partículas subatómicas criadas em diversos fenómenos no universo – estrelas, explosões de estrelas, núcleos activos de galáxias. Quando uma partícula cósmica atinge o topo da atmosfera, dá origem a um chuveiro de milhões de partículas que podem ser detectadas na Terra. As câmaras dos smartphones contêm placas semicondutoras de silício que, quando atingidas por partículas desse chuveiro cósmico, dão origem a um sinal eléctrico que pode ser registado.
“O potencial desta ideia para chegar às pessoas e fazê-las participar é enorme”.
A DECO regista uma imagem a cada dois segundos, analisa-a e, se existirem pixéis suficientes com sinal, guarda-a como um acontecimento interessante. Uma outra aplicação envia a informação do acontecimento – hora, local, observação registada – para uma base de dados central. As aplicações foram desenvolvidas para dispositivos Android mas deverão estar brevemente disponíveis para outros sistemas. Os investigadores testaram a ideia em voos comerciais de longa distância, uma vez que os chuveiros de raios cósmicos são mais facilmente detectáveis a altitudes elevadas.
Vandenbroucke iniciou o projecto como estudante de pós-graduação na Universidade da Califórnia, em conjunto com o colega Kenny Jansen. Matthew Plewa, estudante finalista do ensino secundário que participou num estágio no WIPAC, teve também um papel fundamental. “Seria fantástico motivar os estudantes e o público em geral para recolher dados e compreender as partículas que nos rodeiam, coisas que em geral não têm a oportunidade de ver”, diz Vandenbroucke.
Mas será que uma gigantesca rede de milhões de smartphones pode substituir os grandes observatórios de raios cósmicos? Daniel Whiteson e Michael Mulhearn, da Universidade da Califórnia, responsáveis do projecto Cosmic Rays Found in Smartphones (CRAYFIS), analisaram esta possibilidade num artigo recente.
“Está por provar que se consigam reconstruir com precisão as características do chuveiro, o que é essencial para conhecer o raio cósmico que o originou. Por exemplo, não há informação temporal suficientemente precisa”, dizem Sofia Andringa e Lorenzo Cazón, do Observatório Pierre Auger e investigadores do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), em Portugal. É no entanto possível que “se consigam estimativas úteis, ainda que com uma incerteza considerável, de algumas grandezas”.
Para Pedro Abreu, coordenador do grupo de divulgação do LIP, “está por provar a viabilidade do objectivo científico que o artigo sugere, mas o potencial desta ideia para chegar às pessoas e fazê-las participar é enorme”.
Os raios cósmicos de energia mais alta podem ter energias milhões de vezes superiores às que são produzidas no acelerador de partículas LHC do CERN e a sua origem é ainda misteriosa. De facto, chegam-nos tão raramente (cerca de uma partícula por km2 por século) que são precisos detectores enormes para se conseguirem estudar. O Observatório Pierre Auger, com uma área de 3000 km2 na pampa argentina, é o maior detector de raios cósmicos do mundo.
Artigo de Catarina Espirito Santo ([email protected]), investigadora em física de partículas e aluna do mestrado em Comunicação de Ciência da Universidade Nova de Lisboa