Eis algumas respostas, apresentadas à consulta pública da Anacom sobre o assunto, por Sergio Denicoli, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho.
1) Considerações iniciais
Ao longo de todo o processo de implementação da televisão digital terrestre em Portugal, a Academia tem acompanhado, passo a passo, as decisões referentes ao sistema. No caso específico da Universidade do Minho, a nossa maior contribuição para que Portugal pudesse discutir de forma mais aprofundada a TDT foi a elaboração de uma tese de doutoramento, orientada pela Professora Catedrática Dra. Helena Sousa, aprovada por unanimidade pelo júri arguente, que se reuniu em 30 de outubro de 2012.
No estudo doutoral, embasado por dezenas de documentos e vasta bibliografia, foram feitas críticas contundentes que já alertavam para a possibilidade de haver falhas nas transmissões da TDT, o que beneficiar ia diretamente as empresas que prestam serviços de TV por subscrição.
Alertou-se ainda para o facto das regras do concurso terem transformado em monopólio as transmissões televisivas digitais, sendo que o mesmo não ocorria no caso das transmissões analógicas. Além disto, foi referido que havia um conflito de interesses por ser a Portugal Telecom detentora de um sistema de TV por subscrição e ao mesmo tempo ser a responsável pela implementação do sistema de transmissão dos sinais televisivos digitais terrestres.
Tal conflito de interesses fica claro até mesmo no documento sob consulta pública, referente aos cenários de evolução da rede de Televisão Digital Terrestre, quando a Portugal Telecom afirma que as falhas seriam decorrentes “da existência de condições de propagação anormais, aleatórias e imprevisíveis” o que é contestado pela ANACOM que diz que “estes fenómenos são conhecidos e sempre se fizeram sentir todos os anos”.
Ora, se temos aqui uma afirmação da PT que é contestada pela ANACOM, fica a dúvida a respeito das providências que o regulador tem tomado para garantir a fiabilidade das informações prestadas pelo regulado. Se o regulado afirma ser algo raro um fenómeno que ocorre todos os anos, não caberia à ANACOM contestar tal dado de forma oficial?
A crítica, inerente ao processo democrático, visa unicamente promover uma discussão descentralizada sobre a TDT. É preciso demover a ideia de que esta tecnologia, que se insere em contextos profundamente sociais, deve ser debatida somente em seu aspeto técnico e apenas pelos órgãos diretamente envolvidos.
Não se pode excluir eventuais contribuições por parte da Academia, que poderiam fazer parte do próprio modus faciendi do órgão regulador. Aliás, é necessário frisar que as falhas que têm ocorrido na TDT já haviam sido previstas pela Academia. Ou seja, se as Universidades tivessem sido ouvidas no processo de implementação do sistema, tais problemas poderiam ter sido evitados.
2) As zonas-piloto
Outro exemplo de que a Academia deveria ter sido considerada diz respeito à escolha das zonas-piloto para o switch-off analógico que, se tivesse sido eficiente, a ANACOM não se surpreenderia com as falhas da TDT e não constataria somente “após a migração massiva da população para a tecnologia digital” que a rede de TDT “não estava preparada para suportar as circunstâncias normais e expectáveis inerentes ao seu desempenho”.
Na altura da definição destas zonas, dissemos que as regiões escolhidas eram equivocadas, por aparentemente descumprirem a deliberação da própria ANACOM, de 24 de julho de 2010, a respeito do plano para o switch-off.
A deliberação dizia o seguinte:
“(…) são potencialmente elegíveis para esta fase piloto retransmissores que se encontrem nas seguintes condições:
(i) que seja fácil em termos operacionais proceder à cessação das emissões analógicas;
(ii) que a cessação das emissões analógicas se processe em zonas bem delimitadas cuja orografia dificulte de forma significativa, após o desligamento do retransmissor em causa, a recepção das emissões de TV por estações analógicas alternativas ainda em funcionamento.”
No entanto, as zonas-piloto escolhidas, nomeadamente Alenquer, Cacém e Nazaré, indicavam ser abastecidas por outros emissores e retransmissores, que não ser iam desligados.
3) A rede SFN [rede de frequência única]
Causa estranheza também que, somente após a implementação da rede SFN, a PTC constate que esta rede está mais sujeita a ser afetada por condições externas que uma rede MFN [rede multifrequência]. Ao mesmo tempo, a PTC diz que “qualquer solução técnica que altere qualitativamente conjuntura atual e, que, potencialmente imponha a necessidade de um número muito significativo de famílias ter que passar por novos processos de sintonização de equipamentos de receção e reorientação de antena s, é altamente desaconselhável”.
Cria-se então um grande problema do ponto de vista social. Ou mantém-se a rede da forma que está configurada, sujeita aos percalços “não previstos”, mas que, paradoxalmente, são óbvios numa rede SFN, ou então altera-se a rede e expõe-se a população a mais um desgaste. Cabe ressaltar que este problema poderia ter sido amenizado caso as transmissões digitais terrestres não fossem convertidas num monopólio.
Acreditamos que, apesar dos problemas eventuais que a conversão da rede SFN para uma rede MFN poderá acarretar, esta seria a solução para as falhas do sistema da TDT. No entanto, para que a população procedesse com os ajustes necessários, seria importante que fosse alterado o plano de difusão de canais. Ou seja, a oferta de canais deveria ser ampliada.
Sugiro que seja entregue um multiplex para o operador público, no caso a RTP, para que este pudesse transmitir de forma free-to-air os canais que hoje disponibilizam apenas via TV paga. Sugiro ainda que a TDT contemple canais de rádio.
Além disto, a PTC, por ser a concessionária dos direitos de utilização de frequências, e por não ter tido a capacidade de corrigir ou prever eventuais falhas, deveria ser responsabilizada por arcar com os custos necessários para a migração de um sistema SFN para MFN, que, eventualmente, recaíssem sobre os cidadãos.
4) A nossa proposta
O nosso entendimento sobre as falhas que têm sido causadas na receção da TDT foi publicado no blog TV Digital em Portugal, em 22 de maio de 2012, pelo Engenheiro Eliseu Macedo, cujo texto transcrevo a seguir:
“Estas falhas devem-se a um fenómeno natural muito conhecido (formação de ductos) na Troposfera e ao facto da rede portuguesa trabalhar em frequência única em todo o território continental (SFN).
Os parâmetros atuais da rede TDT em frequência única são estes:
Para uma rede trabalhar corretamente em frequência única, é muito importante dimensionar adequadamente a localização dos emissores, potência de emissão, diagrama de radiação das antenas, etc. O parâmetro de projeto mais importante é o chamado “intervalo de guarda” que corresponde em Portugal a ¼ da duração de um “s ímbolo” e que é equivalente 224us (Um símbolo é obtido através da modulação de um conjunto de bits).
O que acontece então se um recetor receber sinal dum emissor próximo e simultaneamente receber sinal de um emissor TDT mais longínquo? Lembremo-nos que toda a rede TDT portuguesa trabalha na mesma frequência, pelo que esta situação pode resultar em reforço de sinal ou destruição de sinal consoante esta condição:
a) O 2º emissor está dentro da área de intervalo de guarda, isto é, mais próximo que 67.2 km → o sinal é reforçado, interferência construtiva
b) O 2º emissor está fora da área de intervalo de guarda, isto é, mais distante que 67.2 km → o sinal sobre uma interferência destrutiva, podendo mesmo aniquilar a receção.
Vemos portanto que cabe à entidade detentora da rede TDT assegurar que nenhum emissor TDT é captado a mais do que 67 km de distância. Normalmente o que se faz é uma escolha criteriosa dos locais de emissão, sistema radiante e potência emitida. Mas existe mais um factor que parece que tanto ANACOM como PT esqueceram neste processo: a variabilidade intrínseca da atmosfera que provoca alterações brutais do alcance dos sinais rádio.
É isto que está a afetar a rede Portuguesa: o facto de se ter escolhido uma única frequência de operação em todo o continente e a variabilidade do alcance do sinal devido a mudanças na atmosfera. Na verdade, um sinal rádio tanto pode viajar apenas 30km com o no dia seguinte poder alcançar mais de 300 km. Estas variações podem mesmo ser previstas consoante a pressão atmosférica, temperatura, humidade, etc. Sob determinadas condições, os sinais das faixas VHF e UHF podem facilmente ultrapassar a linha de vista e percorrer centenas ou até milhares de quilómetros, muito para além do previsto em situação normal.
Como a ANACOM ainda não consegue alterar as condições de propagação só existe uma coisa a fazer: acabar com a rede SFN e passar a rede TDT para MFN, ou seja, sistema em multifrequência: cada região com a sua frequência de modo a que quando este problema de propagação surja não haja interferência entre regiões e se consiga receber TDT corretamente. Foi o que Espanha fez, nomeadamente na Galiza. Muitos Multiplexers de Santiago de Compostela que estão (ainda) em SFN (e podem alcançar centenas de km) foram desconectados em Vigo da rede SFN e emitem a partir deste emissor em frequências (canais UHF) alterados.
O mesmo se devia fazer em Portugal. Adotar um esquema MFN, que podia inclusivamente reutilizar a antiga rede analógica, já que deixaria de haver problema de interferência destrutiva. Por exemplo, o Norte podia ser servido numa frequência a partir do Monte da Virgem e o Centro servido por outra frequência a partir da Lousã. Os antigos retransmissores analógicos poderiam também ser reativados em pequenos grupos SFN do emissor principal MFN.
A rede SFN tal como está, manifestamente não serve os interesses da população. Uma nota da EBU aconselha a que as redes SFN tenham uma diâmetro máximo de 150 a 250km, muito diferente do que existe atualmente. Essa dimensão, pode no entanto corresponder facilmente às zonas de influência dos antigos emissores analógicos.
É interessante verificar como Portugal dispõe de direitos já negociados para ter em operação 3 redes nacionais em MFN, com frequências distintas por região. O mapa seguinte é um planeamento efetuado pela própria ANACOM, no qual se verificam os canais UHF de 3 Multiplexers, região por região:
Este planeamento foi feito para colocar em prática depois do apagão analógico, em que já se teria todo o espectro UHF e VHF disponível, mas não tem ainda em conta a desafetação dos canais 61 a 69 para emissões televisivas. Estes 9 canais passaram a ser utilizados pela 4ª geração móvel.
No entanto, é sabido que em posterior reunião com autoridades espanholas, Portugal mantém intactos os direitos a 3 redes Nacionais em MFN, pelo que será fácil substituir os 2 casos de frequências acima do canal 60.
Em conclusão: se bem que o MFN, em pequenas redes SFN, pode ainda não resolver todos os casos de receção deficiente (os ecos do próprio emissor continuam a ser um problema) pode no entanto ser a solução para as graves deficiências notadas nos últimos tempos devidos às variações de condições de propagação e que originaram milhares e milhares de queixas. Estas variações serão uma constante todos os anos, principalmente no Verão. Portugal dispõe não de um, mas sim de 3 direitos negociados com Espanha para ter no ar 3 Multiplexes diferentes e em MFN. O apagão analógico já se deu, o espectro está aí. A população gastou com esforço muito dinheiro para se adaptar. Merece agora um serviço condigno.”
Portanto, estando plenamente de acordo com o que propõe o Engº Eliseu Macedo, acreditamos que o cenário 5 é o mais adequado para resolver os problemas de receção do sinal verificados na TDT portuguesa. Ressaltamos, no entanto, a necessidade de considerar-se também a questão do 4G, de forma a prever eventuais futuras interferências deste sistema nos sinais da TDT.
Gostaríamos de deixar algumas sugestões, válidas não só para o cenário 5, mas também para qualquer dos cenários desenhados pela ANACOM, no que toca à receção DTH portuguesa, onde basicamente a baixa adesão mostra que não está a ser um método de cobertura complementar eficaz. Proponho as seguintes melhorias:
a) Impedir a utilização exclusiva de terminais proprietários, pois além de completamente desnecessário, impede que se obtenha o melhor preço do mercado livre. São inúmeros os recetores à venda que permitem a leitura de smart cards de proteção dos conteúdos. Só é necessário que os cartões de acesso sejam disponibilizados à população, sendo razoável que se faça prova de residência no território nacional. Em alternativa, tal como é feito em França e Itália, poderia ser vendido o conjunto Módulo CI (vulgo CAM) com o cartão de acesso, e novamente, permitindo a utilização cómoda de qualquer recetor – ou mesmo TV – com sintonizador apropriado DVB-S/S2 e ranhura DVB-CI. Não há qualquer necessidade de utilização de recetores satélite proprietários. Chamamos ainda atenção para uma provável irregularidade que se passa neste momento: não só os recetores proprietários atualmente em serviço não são uma necessidade técnica como ainda impedem o acesso a sinais livres que são difundidos por satélite, o que viola o disposto na alínea b) do Artigo 103º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
b) Devem acabar restrições para o acesso à solução DTH, exceto comprovativo de morada em território nacional, de modo a tornar esta solução uma verdadeira solução complementar para 100% da população – por exemplo para utilização em segunda residência em local remoto, pelos caravanistas, etc.
c) Os sinais que não necessitarem de proteção de direitos de difusão devem ser emitidos livres de encriptação, como é o caso do canal ARTV [canal do Parlamento].
Esta é, portanto, a nossa contribuição para que tenhamos uma TDT mais eficiente, mais plural e mais democrática.