Pessoas querem “amigos”, empresas preferem “clientes”

As redes sociais correm o risco de ser inóspitas às intenções das organizações, de acordo com Luís Vidigal. A não ser que criem cenários de identificação em torno de valores e objectivos comunitários, explica em entrevista.

“As pessoas nas redes sociais esperam “amigos”, valores e objectivos comuns, enquanto as empresas esperam “clientes e compradores”. É uma das maiores discrepâncias existente entre a visão das empresas e a dos utilizadores face às redes sociais, diz o consultor de e-government Luís Vidigal.
Em entrevista para o Computerworld, explica que as empresas precisam de criar espaços de identificação em torno de valores e objectivos comunitários, para resolver essa diferença. Esta visão deverá ser adoptada até pela Administração Pública (AP), a quem Vidigal lembra que as pessoas confiam mais nas redes sociais do que em declarações institucionais.
E para o consultor não existem dúvidas: o email tende a desaparecer das organizações.
CW – Como alcançar a integração da presença nas redes sociais com outros canais usados pelas empresas? Se muitas empresas manifestam dificuldades em saber em que canal se devem focar, que abordagem poderão adoptar?
Luís Vidigal – Há mais de 20 anos que tenho uma preocupação de integração entre os vários canais de comunicação com a sociedade, não apenas por uma questão de economia de meios, mas acima de tudo por uma necessidade de sincronização das mensagens veiculadas através de cada um dos canais seleccionados. Por outro lado, a necessidade e as atuais possibilidades de personalização da comunicação com os vários públicos dificultam a integração e a própria escolha dos canais.
Se por um lado precisamos de sincronizar e uniformizar, por outro precisamos de diferenciar e personalizar. As redes sociais são uma enorme oportunidade para ultrapassar este paradoxo, desde que saibamos criar os focos e os limites de identidade necessários a cada um dos públicos e a cada um dos segmentos do mercado. As redes sociais tratam da convergência das pessoas e não apenas da convergência dos media, é uma forma de comunicação de muitos para muitos e não apenas de broadcasting de um para muitos. Devem ser consideradas mais como um meio de interação do ser humano e não apenas como um simples instrumento de comunicação tradicional.
CW – Há quem defenda que a utilização das redes sociais, como plataforma de colaboração e de interacção interna nas empresas, é uma falácia, como aconteceu com as intranets. Concorda? Que diferenças existem e quais as vantagens face às intranets?
LV – Tal como acontece com as intranets, as redes sociais podem ser bem ou mal sucedidas se forem bem ou mal implementadas no ambiente organizacional. O sucesso da utilização destas novas plataformas de colaboração depende da capacidade de atracção para uma efectiva transferência do trabalho analógico para o trabalho digital e da indispensabilidade da sua utilização quando se chega ao local de trabalho, seja este local geograficamente físico ou virtual. No caso das redes sociais, dada a sua maior abertura e porosidade, torna-se mais difícil manter a sua utilização numa lógica de subordinação hierárquica, misturando-se com mais facilidade os vários papéis pessoais e profissionais, o que constitui um factor de maior dispersão e um maior risco de quebra de produtividade.
As intranets também não se podem impor pela via hierárquica, mas pela sedução e atractividade que apresentam enquanto novo ambiente de trabalho. No entanto, a escolha da sua estrutura e dos seus instrumentos é mais fácil de institucionalizar, enquanto as redes sociais exigem maiores cuidados na partilha de valores e objetivos comuns dado o seu maior desapego às estruturas hierárquicas.
Como tudo o que é de adesão voluntária, as redes sociais quando bem implementadas criam uma maior fidelização, mas também se podem desfazer com maior rapidez. As intranets são mais formais e institucionalizadas enquanto as redes sociais são mais afectivas e susceptíveis de maior fidelização.
CW – Que cuidados envolve a tipologia de consumidores da Web 2.0?
LV – Os novos consumidores da Web 2.0 levam em consideração a opinião de amigos e estranhos, colocada em blogues, fóruns e nas redes sociais, tendem a comprar cada vez mais online do que offline, gostam de dar feedback online sobre produtos e serviços, criando rankings, blogues e outras formas de manifestação pública de opinião. No entanto estes consumidores não são homogéneos, pois escolhem os canais de acordo com a sua idade e os seus interesses pessoais e profissionais. Por ordem decrescente, o Facebook, o Twitter, o Linkedin, os blogues e o Youtube são sem dúvida as ferramentas mais utilizadas pelas empresas, mas sabemos que cada uma delas tem mais impacto do que outras nas várias tipologias etárias, profissionais, geográficas e de género. A relação entre a exposição pública de perfis e interesses na Web 2.0 e o seu tratamento semântico através de ferramentas Web 3.0, constitui o maior desafio para marketing nos novos canais digitais. Infelizmente a exposição pública através da Web 2.0 nem sempre é consciente e voluntária, assim como o uso e manipulação das ferramentas Web 3.0 ainda está longe de ser regulado por princípios éticos e deontológicos. Temos ainda um longo caminho a percorrer.
Existe uma hierarquia de envolvimento e participação dos vários consumidores Web 2.0. Desde os inactivos e espectadores aos mais críticos e criadores. É cada vez mais evidente a existência de redes de influenciadores-chave, que não coincidem com qualquer hierarquia formal ou estatutária, mas que têm uma capacidade assinalável de mobilização de comportamentos nas várias redes onde actuam. A identificação e o acompanhamento destas novas centralidades torna-se indispensável a qualquer estratégia de gestão das redes sociais.
CW – Por negligência ou falta de recursos, a presença das empresas nas redes não estará a eliminar um problema fundamental manifestado nas queixas dos consumidores: os “defeitos” dos produtos?
Luís Vidigal – Uma das mudanças fundamentais induzidas pelas redes sociais nos relacionamentos entre fornecedores e clientes passou a ser a possibilidade de os consumidores manifestarem agrado (like) ou desagrado (unlike) em relação aos produtos ou serviços prestados por pessoas ou organizações, quer estejam ou não voluntariamente nas redes sociais. Costuma-se dizer que todos estão hoje nas redes sociais quer queiram quer não, pois as marcas e os produtos passam de boca em boca e são referidos positivamente ou negativamente nas várias comunidades por onde passam, sem qualquer controlo por parte dos seus protagonistas.
Não são apenas os clientes mas também os concorrentes e até os próprios fornecedores que se podem manifestar nas redes, valorizando ou destruindo a imagem de um produto ou de uma organização. Estes comportamentos são um enorme desafio para a regulação dos mercados e da concorrência, cujo funcionamento não estava preparado para estes novos comportamentos sociais amplificados e massificados pelo poder da tecnologia.
CW – Quais são normalmente as discrepâncias de expectativas entre consumidores e as empresas nas redes sociais?
LV – A maior discrepância que existe é na visão e nos comportamentos com que a maioria das empresas ainda encara as redes sociais, utilizando este novo canal segundo o paradigma “inside-out” característico dos media tradicionais, ou seja, pensando que a comunicação é dominada de dentro para fora e estritamente comandada e determinada pelos departamentos de marketing. Ignora-se que o poder está cada vez mais nos consumidores e que é necessário reconhecer e saber lidar com o novo paradigma do “outside-in”, ou seja, não adianta “tapar o sol com a peneira” e confundir a imagem institucional que se pretende passar com a imagem social que resulta da experiência e da inteligência colectiva dos consumidores.
Estudos recentes demonstram que as expectativas dos consumidores e dos fornecedores nem sempre coincidem e nalguns casos são profundamente contraditórias, como é o caso da percepção que cada um tem em relação às compras e aos descontos oferecidos que são altamente valorizados pelos consumidores e menos considerados pelos fornecedores e as diferenças de percepção que ambos têm em relação à fidelização e ao sentido de comunidade e de pertença. As pessoas nas redes sociais esperam “amigos”, valores e objectivos comuns, enquanto as empresas esperam “clientes” e compradores.
Enquanto as empresas não conseguirem criar espaços de identificação em torno de valores e objetivos comunitários, as redes sociais serão sempre um ambiente estranho e pouco receptivo aos propósitos empresariais. A atratividade nas redes sociais depende, quer para as pessoas quer para as empresas, da capacidade de criação de um foco de interesse singular e socialmente distintivo. As pessoas como as empresas, numa óptica de empreendedorismo, têm de ser reconhecidas por qualquer coisa em que são melhores que as outras, sendo por isso capazes de criar uma atracção focal geradora de comunidades de interesse e fidelização.
CW – Como é que a Administração Pública (AP) deve usar as redes sociais?
LV – Em meu entender, hoje em dia as pessoas confiam mais nas redes sociais do que nos depoimentos políticos e institucionais. A cidadania activa e a capacidade de sonhar por um mundo melhor está a transformar-se todos os dias em causas espontâneas e a mover-se para as novas comunidades virtuais que se agregam em torno de ideias e valores genuinamente livres e autênticos. Esta nova ciberdemocracia vai girando espontaneamente em torno de novas centralidades e novos espaços afectivos com que as instituições tradicionais ainda não sabem como lidar.
Os desafios que se colocam à AP na utilização das redes sociais são semelhantes às restantes organizações, no entanto as instituições públicas, pela natureza dos serviços que prestam, podem criar em torno de si redes de conhecimento e debate sobre temas societais que interessam aos cidadãos e aos agentes económicos, nomeadamente nos domínios da saúde, da educação, da justiça, da fiscalidade, dos licenciamentos económicos, das questões urbanísticas, da protecção ambiental, etc.
Como aconteceu há mais de 20 anos com o sistema Infocid, o segredo do sucesso está na criação de comunidades em torno dos eventos de vida dos cidadãos e das empresas e não em torno do protagonismo dos vários ministérios ou organismos envolvidos. Isto requer uma colaboração activa e deliberada de várias entidades parceiras para a gestão cooptada de redes sociais em torno de serviços públicos que efectivamente interessam à sociedade. As redes sociais dos serviços públicos devem ser criadas numa perspectiva “outside-in” e só assim poderão mobilizar o interesse e a participação de uma verdadeira cidadania activa.
CW – As plataformas de email tendem a desaparecer das empresas, substituídas pelas redes sociais internas? Se assim for, como se resolvem as dificuldades de arquivo e descoberta de informação digital?
LV – Sem dúvida o email parece ter os dias contados, sobretudo para as novas gerações que se habituaram aos chats, aos SMS e a outras formas de comunicação síncrona, encarando as redes sociais não apenas como palcos partilhados, mas também como forma instantânea de comunicar de um modo mais privado, comunitário ou intencionalmente público.
O arquivo das mensagens e dos conteúdos e a sua integração nos sistemas de gestão documental das organizações vai ser um grande problema no curto prazo, como já o foi aquando do aparecimento do email. No início entendemos estas novas formas de comunicação como informais e susceptíveis de serem ignoradas e segregadas pelas instituições. Funcionam como verdadeiros arquivos pessoais efémeros e marginais às organizações.
Os emails hoje já integram facilmente com a maioria dos sistemas de gestão documental e apenas compete ao utilizador tratar e arquivar voluntariamente o seu conteúdo nos repositórios formais da instituição. Não tenho dúvida de que será o que vai acontecer no futuro com as redes sociais e não tardará o aparecimento e a vulgarização de widgets e outros mecanismos de integração com os sistemas formais de gestão documental. Esta integração já começa a acontecer nalgumas ferramentas de gestão do conhecimento, mas por enquanto num ambiente mais fechado e protegido em relação às redes sociais mais populares. Digamos que estas redes ainda são sobretudo utilizadas como canal de saída para divulgação e menos como canal de entrada para incorporação nos repositórios institucionais.




Deixe um comentário

O seu email não será publicado