Não toquem nos pacotes de dados

Neutralidade das redes divide operadores, políticos e reguladores. Quanto aos consumidores, quando descontentes, resta-lhes mudar de fornecedor de serviço – se puderem.

A neutralidade das redes, nomeadamente da Internet mas também das móveis, é um assunto pouco pacífico e as visões são tão optimistas consoante o lado em que se está nesta questão, como ficou patente na conferência “Neutralidade da Internet – problemática, estado da arte em Portugal”, organizado pela Internet Society – Portugal Chapter e pela Associação para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI), na passada quarta-feira.
“Não há problema em Portugal” porque “há escolha entre operadores”, assegura Madalena Sutcliffe, da direcção jurídica e de regulação da operadora Cabovisão e também da APRITEL.
Luís Pisco, da DECO, não partilha da mesma visão. “Há interferências à neutralidade da rede em toda a Europa”, assinala, “há restrições à mudança de operadores, falta concorrência e escolha, falta a concretização e certeza jurídica sobre conceitos” como o que são “medidas legítimas de controlo de tráfego”.
A DECO “há anos que requer um código de qualidade de serviço para a Internet”, como existe noutros serviços, mas sem sucesso.
Luís Pisco considera ainda que “numa rede neutra, os consumidores devem saber a que têm direito, o que está regulamentado e a oferta” disponível. Mas “nalgumas áreas, o utilizador está sujeito à escolha de apenas um operador”, como lembrou Miguel Caldas.
Este responsável da Microsoft é peremptório: “já temos ‘wall gardens’” na Internet, zonas fechadas e com acessos limitados, como é o caso do serviço Xbox Live, para acesso pela consola Xbox (ou outras como a PlayStation da Sony ou a Wii da Nintendo). Ou seja, numa comparação rodoviária, vias por onde se circula mais depressa do que noutras.

De defensora forte a moderada
A Microsoft “é, desde 2003, uma defensora ‘forte’ da neutralidade da Internet”, considerando que são “as pontas das ligações que devem decidir” o que é emitido e recebido. Pelo meio, os operadores “devem garantir que os pacotes de dados circulam bem de um lado para o outro”.
Mas, agora, “há uma mudança”, reconhece, porque há negócios como o Netflix (empresa americana de “video on demand”, que já anunciou o seu interesse em vir para a Europa), o YouTube, da Google, ou os “torrents” que “põem pressão sobre os operadores”. Assim, “aceitamos menos uma neutralidade absoluta” quando, em paralelo, apela à disponibilização da Internet em qualquer lugar, “libertem o espectro para ter Internet com mais qualidade”, defende, “vai ser precisa mais Internet” e mais “Internet da boa para todos”.
Para isto acontecer, são precisos investimentos dos operadores e “não pode ser em ‘wall gardens’”. Madalena Sutcliffe reconhece que “os operadores não vão fazer investimentos sem receitas”, e Fernando Flores, director de regulação da Portugal Telecom, acentua que “a eficiência e sustentabilidade do modelo de negócio dos operadores está em causa”. Nesse sentido, Miguel Caldas reconhece que nalgumas zonas “pode haver investimento público, onde os operadores não tenham retorno”.
“Os dispositivos não podem estragar a rede e o operador deve ter direito a desligar” os que o fazem. De resto, deve-se permitir o “acesso a conteúdos, aplicações e serviços à escolha do utilizador, desde que sejam legais”, e “proibir a discriminação pelos operadores” no que penalize os consumidores. Nesse sentido, “as queixas devem ser resolvidas mais rapidamente”, disse, apontando directamente para a entidade reguladora Anacom.

SOPA limita inovação
A questão dos conteúdos ilegais é algo que afecta os prestadores de serviço de Internet (ISP), como a Amen. Nuno Matias lembrou que a sua empresa e outros ISPs estão obrigados por lei a bloquear certos conteúdos, como transmissões de futebol online a partir de canais televisivos detentores dos direitos de emissão. “Se detectarmos, somos obrigados a cortar essa transmissão” online, declara.
Quanto à neutralidade da rede, considera que não deve haver vigilância dos conteúdos, não deve haver limitação ao tráfego anormal nem discriminação no tipo de tráfego.
O responsável da Amen lembrou como, sendo a Internet uma rede mundial mas com gestão dominante nos Estados Unidos, a legislação produzida neste país acaba por ter efeitos internacionais. O exemplo mais recente é a estratégia de “bloquear primeiro o acesso e perguntar depois” contido no SOPA, que considera ser semelhante à censura online na China. Nuno Matias salienta mesmo que, com o SOPA “há 10 anos, não haveria hoje YouTube”.
A objecção ao SOPA é grande, de tal forma que a Electronic Frontier Foundation criou o site “Global Censorship Chokepoints – Tracking Censorship through Copyright Proposals Worldwide” para “documentar e monitorizar as propostas globais para tornar os intermediários da Internet em polícia do ‘copyright’”.
Porque o objectivo desta legislação norte-americana é proteger os grandes produtores de conteúdos, nomeadamente os instalados naquele país, em nome da propriedade intelectual e do direito de autor.

Pirataria das feiras ainda é lei
No segmento dos conteúdos musicais, já “não vemos a Internet como uma ameaça”, reconheceu Eduardo Simões, da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP). “A indústria fonográfica demorou muito tempo a abraçar a Internet e se não fosse Steve Jobs”, na Apple que lançou o serviço iTunes, a situação poderia não se ter agilizado.
Este responsável vê “com agrado a experiência Hadopi em França”, em que após três avisos ao detentor de um endereço IP que esteja a violar a lei – com downloads ilegais de conteúdos, por exemplo -, o serviço pode ser suspenso. Reconhece que isso só deve ocorrer quando a prova for evidente e, em caso de dúvida, não devem haver penalizações.
Depois, interessa que as “sanções sejam efectivas”, ao contrário do que sucede em Portugal. Em 2006, a AFP apresentou 38 denúncias às autoridades nacionais, “sabemos o resultado de 10 ou 12 e é decepcionante, a impreparação do sistema judicial veio à luz”, afirma.
Eduardo Simões salienta ainda que o quadro legal foi concebido para a pirataria das feiras, nomeadamente com penas de prisão, o que “não é adequado para jovens sem cadastro” que actualmente fazem cópias ilegais de conteúdos.

Vai haver conferência parlamentar sobre “Net neutrality”?
O Bloco de Esquerda (BE) assumiu-se como “o primeiro partido a propor legislação sobre a neutralidade da Internet” mas os factos apresentados pelo Partido Comunista Português desmentem-no.
Pedro Filipe Soares, do BE, reconheceu que este “não é um debate novo mas a que chegamos tarde”. Para ele, “não cabe aos operadores ter opinião e avaliar o tráfego” de dados, “tal como a Brisa não vigia o conteúdo dos veículos” que passam nas auto-estradas.
O responsável do BE acredita que uma censura aos conteúdos online pode gerar uma censura de opiniões e acabar-se por ter “uma censura encapotada na Internet”. Por isso, considera “inaceitável” a “análise de conteúdos em nome da gestão de rede”, como já ocorre na Europa.
António Serrano, do Partido Socialista, considera que a neutralidade das redes é “uma questão técnica com inúmeros impactos, nomeadamente políticos e de sociedade”, pelo que propôs a realização futura de uma conferência parlamentar sobre este assunto.
Já Bruno Dias considera que a neutralidade da Internet “é de importância estratégica” e o seu partido entregou na passada quarta-feira uma proposta de lei sobre o tema.
O deputado do PCP colocou a tónica no debate sobre a regulação e a concorrência no mercado perante os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e consumidores, que “não se devem subjugar a estratégias comerciais”. E notou ainda que a Lei das Comunicações Electrónicas contém “termos insuficientes” sobre a neutralidade das redes – por exemplo, “não impede a hierarquização dos conteúdos”.




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